Colaboradores

sábado, 21 de novembro de 2009

A mais poder

Aqui fazia temporal há uma semana com previsões de “um novo ciclone extratropical junto à costa gaúcha”. Portanto dias sem caminhada e sem sol na sacada do apartamento. O antigo ainda, a mudança adiada para uma semana antes do Natal. Essa era uma das dificuldades entre tantas, entre as de alongamento e músculos pedindo pra trabalhar. “Todo cuidado era pouco” com a mente, exigida no lugar deles nos últimos três anos.
Sobre o equilíbrio, ela, que tinha labirintite, tinha escrito há pouco em email para um “razão do ‘des’”: “equilíbrio se faz com dois pés no chão, pesos iguais dos dois lados”, mas ela nem estava falando disso, mas do seu desequilíbrio mesmo, alterado por problemas no lado esquerdo, pela falta de “um lado”, como ela disse. E a falta de ar já tinha sido diagnosticada desde 2003 como “angústia” e desde então aparecia pouco, bem pouco, que o peito então aberto já repleto de anticorpos.
“Tudo agora acontecia em etapas”, com a autoproibição de pensamentos futuros: em horas, com a escada de incêndio pendurada na manhã seguinte. Mentira essa história de que aparecia pouco, era só uma questão de já ter o diagnóstico e tomar a cápsula do autorrecondicionamento. Às vezes uma tragada do ar oceânico resolvia, mas agora que não tinha carro usava um charuto, com resultados bem próximos.
Então o viajante coloca uma agulha entre as linhas. Espetada aqui, nas calçadas de Porto Alegre cobertas de flores roxas, que ela pisa diariamente no trajeto até o Zaffari – porque entre o apartamento até a parada do Universitária, na Osvaldo, só há as marcas da passagem daqueles que são a maior população do Bom Fim, talvez com um tanto mais de aprumo do que os guaipecas italianos, e a imensa sombra da sinagoga (ao mesmo tempo em que ela pensa o que iam dizer disso, já que ela gosta da presença do prédio, mesmo em dias que tem de desviar dos seguranças e diminui o passo pra ouvir o sotaque do rabino, a quem ela deseja secretamente fazer uma pergunta, ela lembra: te contei que sou do interior?) – espezinhada, cutucada, ela emudece.
Ele deve saber, ela sorri, que eu não era daqui. (Mas parece que ele não sabe do pequeno mundo de seus pés e do ilimitado espaço de suas vontades.) E diz de calçadas e flores roxas propositadamente, para que ele leia o poema do dia primeiro de janeiro e entenda. Passa os dias seguintes àquele email pensando naquela regra de ne pas penser le future. Não tem o que dizer pra ele de Porto e de BH e de futuro. Que ele riria de sua inocência, como ri o amigo de suas anacrônicas dúvidas sobre a moral judaico-cristã e maçãs.
Só uma igreja em Valle Noncello? Ela sabe que um dia ele pediu ao pai que apagasse aquela imagem horrível da parede, porque pra ele era só isso: um desenho, que fazia os amigos lhe dizerem que ele estava entre os bons, perdoado portanto. Mas afinal perdoado de quê? Mas é bom que ela pare de falar do que não conhece, nesses tempos de suspeitas.
Ela tinha consciência disso, de seu profundo desconhecimento. De todas as coisas que ele certamente olhava agora com olhos desconfiados, de quem não tem o sonho de se ajoelhar no jardim de Giverny e beijar o chão por onde pisou o pintor de seus sonhos. Porque seus sonhos, e ela adquirira esse direito, são todos pincelados por Monet. É possível dizer que sonha impressionista, impressionada que é de tudo. O viajante, ela pensa, é um menino que ainda tem a mesma vontade daquele aprendiz de jardineiro, oferecendo-se pra plantar onze-horas, como quem se sinaliza na terra. Hoje poemas nos quintais do mundo. Então ela fecha os olhos e vê aquele menino jardineiro de trouxa às costas, percorrendo caminhos, já não mais no chafsaidcar da avó holliywoodiana, mas por seus próprios pés, catando uma a uma as pedrinhas deixadas pelo pai na rota inversa, e quer perguntar pra ele: que pedrinha é essa que tem em mãos agora, “velhinho apressado”?
Ela é da opinião que não é melhor correr como os outros. Recém aprendia a calma, e sua caminhada vibrante escondia um pensamento vagaroso, e ultimamente mais circular que o trajeto do Parcão. Ficou com vontade de dizer pra ele, agora mesmo, que parasse de pensar em apoplexias e corvos de outono. Que trocasse tangos argentinos e tragédias gregas por óperas italianas. Ela mesma estava chateada por ter perdido Tosca no Met Ópera, ali no Cine Moinhos, imagina a possibilidade não de um Metropolitan de verdade, mas de um Teatro dell’Opera di Roma! Apoplexia catártica!
Os olhos dele! Ela lembra de pedir com alegria infantil: se fores à casa de Monet, olha tudo pra mim, e os espetáculos de flamenco no Teatro Poliorama em Barcelona, Castle Rock e Eilean Donan Castle, na Escócia (e me traz o cheiro do lodo pra eu por no meu sonho, e, por favor, não olhe nada novo, nem entre, eu só preciso dos aromas seculares), há tanto ainda pra ver, e cheirar, e beijar, e por a mão do jeito brasileiro.
Capri. É mais perto, ela pensa. Se ele for a Capri, ela faria uma lista de coisas pra serem olhadas, que poderia ser resumido em ‘sinta tudo’. De repente ela se dá conta que “divieto sostare” é uma ordem que bem cabe a ele, correndo de guaipecas italianos ou seja lá o que for que eles simbolizem. Só que esse negócio de metáforas e metonímias (talvez uma sinédoque dependendo da escala) é bem coisa dela, que usa mais que assobio pra disfarçar. Em vez de treinar rodopios e chutes certeiros no branco com pintas pretas, ela costuma dançar no tapete da sala, quando as crianças não estão em casa, chove ou é noite, ou o coração pede que ela dê um jeito de desviar as idéias para o corpo, um corpo sozinho dançando na penumbra. E ela só para quando ele cansa demais pra voltar aos pensamentos. Às vezes o senso de ridículo ou a tristeza ou a solidão chegam antes e desligam o cd player. Raras vezes uma idéia aparece, que não é triste nem solitária e que pode ser aproveitada na tese, então ela volta ao computador.
E assim ela trafega entre calçadas roxas, telas de computador e tapetes, esperando. Uma banca de doutores que lhe aprove, um anjo torto que lhe diga “vai”, alguém que não seja virtual. Por causa da proibição, no entanto, tudo isso está dobrado na gaveta e agora ela só espera o verão, que os charutos estão acabando. O amigo dela, aquele do email do des-equilíbrio, tem o desejo de fugir daqui no primeiro pouso da andorinha, mas ele vive dizendo que está ficando velho demais pra isso e praquilo. Ela ama o verão e observa com gosto a gota que lhe escorre entre os seios quando o sol não respeita o divieto e estaciona nas terras meridionais do Brasil, ignorando a linha do Equador. Tão primitivo, ela pensa, e se regozija de ser só uma mulher.
E tu, ela pensa, virás com as andorinhas. Nada de neblinas no janeiro de Porto Alegre. Aqui, “outrora” é uma palavra que soi estar nos textos de Assis Brasil, e olhe lá! Secar duas vezes os joelhos? Bem capaz! ela exclama – antes disso, já estarás suado de novo, então é melhor ignorar essas pequenezas de umidade. Hosana in excelsis será o ar-condicionado!
O El-niño estragou a safra de amoras pretas em Três Forquilhas, no sítio dos pais dela. Será que teremos geléia suficiente pra lhe dar um pote e substituir a de mirtilo? ela pensa. E, como as coisas práticas da vida não respeitam as metáforas e as danças no tapete (só os desenhos no tapete, como o de Henry James), então ela lembrou que tem de ir à feira comprar manteiga. E a gata encolhida no sofá lembrou-a do verão que tarda e do anúncio de temporais, e das roupas na máquina, e da louça que ficou na pia da festa do aniversário do filho e da cama que às três da tarde está emaranhada.
Tanto tempo enrolando brigadeiros, por que não comemos de colher? Ora, ela pensa, há que se fazer algo pra justificar a espera, como não desligar o motor em local proibido, e ficar batendo no volante e olhando para os lados, como quem procura o passageiro perdido. Nem todos têm o olhar que se desvia para pedrinhas ao acaso (ou nem tanto), amplos pátios, cancelas e folhas amarelas, e cores de guaipecas. Nem todos sabem olhar pelos outros com olhos de afeto alheio. É mais fácil ignorar a placa.
Ela pensa no gosto de crostini de farina integrale e de mirtilos: poderia ele incluir na lista o sabor das coisas de lá? Se fosse uma história, escreveria uma carta pra ele que começaria assim: Menino-jardineiro, corredor-rural, poeta-viajante, acaba de bater um raio de sol na janela deste apartamento... Logo logo pousarão as andorinhas. Voa, e vai largando as tuas pedrinhas, que logo darás o maior chute em rodopio naquele branco de pintas pretas.