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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Da imprescindível razão de ser

Lá. Bem adiante de onde vêem meus olhos, alheia à cidade. E bem ali, aqui, na sombra do maracujá enroscando-se nas grades da sacada, está a razão. E não é um sapato nem uma casa de pedra encravada na montanha. É tão convexa, estabelecida entre meus dedos, tão e tanto e tudo, que parece que me falta o ar, que tenho fome, e sede, e frio. E tudo o mais parece desnecessário e sem sentido. Dentro de mim ela morre, e mesmo assim flutua e pesa.
O ar continua entrando em meus pulmões, eu acordo de manhã, eu me deito à noite. Mas entre essas coisas que não posso deixar de fazer, tudo é oco. Rejeito todas essas sensações que eram para ser prazer – o gosto de uma castanha e mesmo o som que ela faz ao cair na grama, nos dias de sol em que o vento cochicha entre meus cabelos. E o sol, a grama e a castanha então me dizem na voz do vento – que é só disso que eles sabem: do sangue que corre em minhas veias, do oxigênio, do calor na minha pele, da chuva, da terra. E com eles eu desprezo o que não me basta.
Pra que a mordida na maçã? Quando minha boca reconhece o supérfluo, a língua repele a insipidez. O sabor me fere como um aviso de morte. E a rotina prossegue como um recado: as coisas não estão no seu lugar. Há uma mancha desbotada na mesa, um vazio do que devia estar ali. Há um silêncio no canto da sala, no quarto uma sombra fugidia que se esconde quando eu abro a porta e que pesa em mim como se subisse nos meus ombros. E as coisas viram cinza como a tumba em seu segredo revelado.
Então a língua cala, a pele dorme, o corpo se fecha – pra que azul, roxo, doce, amargo, quente, líquido, arrepio? Posso até sorrir, a tristeza tão esticada na curva que nega a si mesma. E não faz diferença. Noite? É tudo uma questão de simplesmente prosseguir, e engolir a maçã. Sem gozo.
Sem véspera, a boca seca. Sem respiração suspensa, o estômago não contrai pra despertar as mãos. Sem a gota de suor que desce na nuca, sem o frêmito. Nenhum movimento em direção à vida. Nenhuma pergunta estarrecida diante do óbvio. De olhos fechados, meu coração continua, meus pés recebem o que lhes cabe, meu corpo estático caminha.
Amanhã só o sol, medido em horas, em eterna consecução, mesmo o fim marcado em milênios. Mas que diferença faz o tempo a quem não espera? É apenas um som repetitivo escarnecendo. Importa o agora, me dizem os donos da razão. O agora é uma fração do antegozo e só serve aos que saboreiam, mas eu não respondo. Porque estou morta às perguntas e aos sabores.
A dúvida calada em meu peito nem é minha, a sombra do maracujá já me disse tudo. E aquele carro mal estacionado. O prédio. O vazio, uma corda serpenteando as ruas, as beiradas, os centros, minhas pernas, meus pulmões. Eu podia gritar, mas então eu ouviria. E eu não quero me acordar e enxergar de novo que ela morre dentro de mim.