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quinta-feira, 18 de julho de 2013

Capítulo 12 – A romantic name for the lake shore


Naquele dia Malitzia acordou estranha. A janela tinha ficado apenas encostada à noite e o vento a abrira, deixando entrar a aragem da noite. Estava frio o quarto e talvez isso a tenha feito sonhar de novo com florestas e flautas e mantos sujos ao pé de fogueiras, como daquela vez em que ela escrevera o poema que jaz em uma folha amarelecida na gaveta das meias. Cheiro de sangue e brumas e espadas. O resultado da ida ao sebo está no alto da prateleira, à esquerda, em três volumes. E o resto do salário se foi virtualmente em música celta, ela amaldiçoando o fim do Limewire. Corrs era profano demais.
Agora de novo esse contexto – contexto é uma ótima palavra aqui, porque certamente isso resultaria em escrileituras. Da minha aparente eterna rigidez diante das situações, observei Malitzia levantar feito a costela de Adão, farejando o paraíso como uma novidade e evidenciando uma franca decepção. Mas eu não era a serpente e portanto não fiz nenhuma sugestão sobre maçãs. Aliás, a tentação bem podia ser aquela maçã eletrônica em cima da mesinha, com sua luzinha incandescente, chamando como aquela outra, púrpura, que a mãe de Malitzia colocou na frente da casa – para não ser tão evidente.
Lembrei que no escuro da noite Ilana batera na porta para dizer-lhe que ele estava lá embaixo. Dizer-lhe é modo de dizer, pois como sempre acontece no meio da noite, foi um bilhete sob a porta que fez Malitzia arrancar o pijama, escovar de novo os dentes, mirar-se na penumbra umas dez vezes e andar de um lado a outro do quarto até a desistência. Nunca vou entender essa espécie de esperança feminina que, contradizendo o gênero do presságio, parece nunca entender que rotina é rotina. Se ele nunca vem quando entra pela porta da frente, por que ela sempre acha que um dia ele, um homem, vai mudar o percurso e o costume?
Pensei que contaria até dez e Malitzia apertaria a campainha. Ilana como sempre às dez horas estaria dormindo, talvez com um sorriso de despeito pelo gesto do bilhete que, ela pensa, apaga todos os outros despeitos que ela faz de conta que não sofre. Juçanã subiria pensando que era o café da manhã incompleto. Dez. Não naquela ocasião. Naquele dia Malitzia acordou dama do lago. Colocou o café a fazer, e torradas com manteiga. Diadorim subiu em seu colo, a mais nova moradora do quarto. Diadorim porque Malitzia ignora seu sexo, ignora por querer, talvez para amar Diadorim, a gata-veredas.
Quasímodo parecia escutar os acordes do violino, sentado diante do computador. No dia em que ele foi batizado, mal entrara pela sacada em uma tarde de chuva, eu não precisei de explicação sobre seu nome, tanto parecia que aqueles chumaços de pelo no alto do pescoço eram uma corcunda.  Ademais, vive no telhado como que a confirmar seu nome. E o Marquês de Faial – ou apenas Marquês – é assim chamado por ser feio e elegante. E é elegantemente esticado sobre o tapete que ele estava, olhando para a janela como quem olha para seu nobre latifúndio.
Malitzia não enganou nem a mim nem a Diadorim, que logo sentiu a tensão e fugiu do colo. Com os felinos todos no quarto nunca é preciso olhar a previsão do tempo. Estava frio lá fora, e havia eletricidade aqui dentro. Antes da batida na madeira e do movimento de Malitzia, lá se foram todos pelas escadas da porta da esquerda. Malitzia desapareceu do meu campo de visão para deixar Juçanã entrar. Ouvi os ferros um após o outro. Gosto dessa índia, gosto de vê-la em seu silêncio de quem ouve tudo, sempre com uma expressão serena. Com Malitzia ela fala, fala baixinho, quase se desculpando do seu próprio som. Enquanto lençóis foram sendo trocados, roupas do cesto carregadas, toalhas, os conselhos de sempre sobre o banheiro, as mesmas perguntas sobre o dia da limpeza e os suprimentos do frigobar, eu fiquei esperando uma novidade de Malitzia. Quis pensar que aquele olhar inquieto de desejo era uma pergunta. Juçanã foi lavar a louça da noite, mandando Malitzia comer, “toma teu café, toma, come, tua mãe mandou eu olhar”. Dez. Eu estava inapto para previsões. Que não me viessem as madrastas!
A novidade veio de outro canto, Juçanã lhe estendeu o bilhete que ela quase se esquecera de entregar, era de Ilana. Malitzia fez de conta que não se importava, jogou-o do outro lado da cama. Nada de varrer agora, Sanã. Depois que eu sair, hoje eu vou, não faz mal o frio. E lá se foram as saias e aventais da tia-avó morena, da tia índia, ama-seca, a coisa mais perto de mãe que Malitzia conhecia. Porta trancada, os sons das três trancas de novo, as três trancas trágicas como Malitzia gostava de dizer pra ele. Ela até fez um poema. “As três trancas trágicas Uma. Duas. Três. Atravessam-me. Traio-as. E trago o mundo pelas janelas. Abertas.”
Embora Malitzia confessasse diante de mim que sabia que ele não tinha trepado (três trancas) com ninguém na sua vinda ontem à noite, eu não precisava daquela declaração para conhecer o conteúdo do bilhete. A trilha sonora então trocada e o café da manhã recebendo a devida atenção já disseram que tudo estava intacto. Tango. (Se eu pudesse declamaria agora, três, trancas, trocadas, traídas, tango). Gardel era prenúncio de luxúria. Era prenúncio só porque ele não gostava de tango, se não seria simultâneo ao ato.

Com uma torrada na mão diante de mim e olhos nos olhos, ela anunciou, dessa vez como quem finalmente entende os protocolos: “Ele vem hoje, sempre vem no dia seguinte. Se veio só para jogar com a cambada, ou pra matutar o eleitorado, então vem hoje, pela minha porta”. Não duvidei, até pude imaginar já o som dos passos dele pela escada e as grandes portas de vidro da sacada se abrindo, as duas, como sempre, como se entrasse um imperador muito largo. Malitzia sentada na poltrona talvez, perfumada, nua, talvez com aquele chambre das manhãs de sonhos de castelos, dama do lago, na penumbra. Talvez seminua, com as luzes todas acesas, dançando ao som de Joss, sabendo que Thor a observava lá de sua janela, tentando se manter são. Não importava como, mas esta noite Malitzia estaria esperando, de janelas abertas, como sempre. E como sempre ele viria, dono, homem. E Thor socaria alucinadamente as paredes como se fosse ele, o gamo-rei. Enquanto eu imaginava tudo, Malitzia já sentava diante do computador, para escrever, com um livro na mão. Corrs reabilitado. No alto da prateleira, o vazio entre os velhos três volumes indicava: sim, seria a noite da senhora da árvore.