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terça-feira, 30 de julho de 2013
Capítulo 13 – À sombra dos livros
Ela
tinha cantado “I’m your man” pra ele, com a voz do Leonard Cohen sussurrando
por baixo. Tentei enxergar se algum músculo dele se movia além do óbvio. Talvez
um pouco nos cantos da boca, mas apenas quando Malitzia se moveu na poltrona. É
impossível decifrá-lo além de que ele seja perigoso. Não é que ele pense que o
mundo gira ao seu redor. É que são pequenos redemoinhos, os pequenos mundos ao
redor dele, que funcionam sob seu comando. Eu tenho medo dele, confesso, e vejo
esse medo nos olhos de Malitzia. Não sei como ela pode. Talvez seja mesmo o
medo, uma espécie de adrenalina que o desejo permite. Quando ela era Marcel
atrás das raparigas, ele seguia sendo Bergotte e talvez também Gilberte.
À
beira de uma praia, em um campo florido ou em uma cidade fermentando à beira da
modernidade, Malitzia não se interessaria por pessoas, a não ser por si mesma e
suas sensações diante do mundo. Se a realidade – e talvez mesmo certos
fenômenos sociais – a interessavam a ponto de perder horas a contemplar as
formas de uma pedra (desde que com trilha sonora), jamais se voltaria a
entender alguém. A não ser que esse alguém fosse um personagem, alguém com existência
e personalidade verossímeis – não reais –, jamais um tipo qualquer. Esse era o
caso de Marcel, por quem Malitzia nutria uma admiração irritante. Acreditava
tanto nele que odiava todo aquele burburinho de coisas dos quais ele corria
atrás, gentes e sensações que ela desconhecia. Defendia-o diante de Gilberte e Swan
e desejava, como quem reza, que o Marcel atrás do narrador tivesse deixado, em
uma gaveta que ainda não fora aberta, um calhamaço inédito. E ali Marcel estava
redimido de não a ter encontrado. Só não sabia que destino deveria ser o dele,
apenas que tinha de ser um final feliz, preferencialmente com ela. Malitzia
acreditava que podia sempre salvar os personagens de seus destinos de papel.
Às
vezes penso que Malitzia sempre é Marcel quando lê. O mundo dele é a biblioteca
dela, e ambos escrevem, cada um em seu universo, as suas próprias sensações. Para
eles, tudo é impressionismo, e só percebem aquilo que lhes diz respeito.
E
assim não posso deixar de me preocupar com o destino dela. Olho pra esse homem
ali, tentando convencê-la de sua utilidade, mais para os outros do que para
ela, e vejo como que cacos, um reflexo cheio de fissuras que se vão romper a
qualquer instante. Quando este imenso casarão de que ela se faz prisioneira
ruir, não serão os livros a salvá-la, como ela pensa faz com a ficção. Muito
menos ele, com toda a sua imunidade. Embora tudo esteja à ponta de caneta, não
haverá leitor para concretizar uma história com final feliz. O livro será
fechado, todos eles, e Malitzia finalmente talvez se transforme naquilo que ela
sempre sonhou ser: uma personagem.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
Capítulo 12 – A romantic name for the lake shore
Naquele
dia Malitzia acordou estranha. A janela tinha ficado apenas encostada à noite e
o vento a abrira, deixando entrar a aragem da noite. Estava frio o quarto e
talvez isso a tenha feito sonhar de novo com florestas e flautas e mantos sujos
ao pé de fogueiras, como daquela vez em que ela escrevera o poema que jaz em
uma folha amarelecida na gaveta das meias. Cheiro de sangue e brumas e espadas.
O resultado da ida ao sebo está no alto da prateleira, à esquerda, em três
volumes. E o resto do salário se foi virtualmente em música celta, ela
amaldiçoando o fim do Limewire. Corrs era profano demais.
Agora
de novo esse contexto – contexto é uma ótima palavra aqui, porque certamente
isso resultaria em escrileituras. Da minha aparente eterna rigidez diante das
situações, observei Malitzia levantar feito a costela de Adão, farejando o
paraíso como uma novidade e evidenciando uma franca decepção. Mas eu não era a
serpente e portanto não fiz nenhuma sugestão sobre maçãs. Aliás, a tentação bem
podia ser aquela maçã eletrônica em cima da mesinha, com sua luzinha
incandescente, chamando como aquela outra, púrpura, que a mãe de Malitzia
colocou na frente da casa – para não ser tão evidente.
Lembrei
que no escuro da noite Ilana batera na porta para dizer-lhe que ele estava lá
embaixo. Dizer-lhe é modo de dizer, pois como sempre acontece no meio da noite,
foi um bilhete sob a porta que fez Malitzia arrancar o pijama, escovar de novo
os dentes, mirar-se na penumbra umas dez vezes e andar de um lado a outro do
quarto até a desistência. Nunca vou entender essa espécie de esperança feminina
que, contradizendo o gênero do presságio, parece nunca entender que rotina é
rotina. Se ele nunca vem quando entra pela porta da frente, por que ela sempre
acha que um dia ele, um homem, vai mudar o percurso e o costume?
Pensei
que contaria até dez e Malitzia apertaria a campainha. Ilana como sempre às dez
horas estaria dormindo, talvez com um sorriso de despeito pelo gesto do bilhete
que, ela pensa, apaga todos os outros despeitos que ela faz de conta que não
sofre. Juçanã subiria pensando que era o café da manhã incompleto. Dez. Não
naquela ocasião. Naquele dia Malitzia acordou dama do lago. Colocou o café a
fazer, e torradas com manteiga. Diadorim subiu em seu colo, a mais nova
moradora do quarto. Diadorim porque Malitzia ignora seu sexo, ignora por
querer, talvez para amar Diadorim, a gata-veredas.
Quasímodo
parecia escutar os acordes do violino, sentado diante do computador. No dia em
que ele foi batizado, mal entrara pela sacada em uma tarde de chuva, eu não
precisei de explicação sobre seu nome, tanto parecia que aqueles chumaços de
pelo no alto do pescoço eram uma corcunda.
Ademais, vive no telhado como que a confirmar seu nome. E o Marquês de
Faial – ou apenas Marquês – é assim chamado por ser feio e elegante. E é
elegantemente esticado sobre o tapete que ele estava, olhando para a janela
como quem olha para seu nobre latifúndio.
Malitzia
não enganou nem a mim nem a Diadorim, que logo sentiu a tensão e fugiu do colo.
Com os felinos todos no quarto nunca é preciso olhar a previsão do tempo. Estava
frio lá fora, e havia eletricidade aqui dentro. Antes da batida na madeira e do
movimento de Malitzia, lá se foram todos pelas escadas da porta da esquerda.
Malitzia desapareceu do meu campo de visão para deixar Juçanã entrar. Ouvi os
ferros um após o outro. Gosto dessa índia, gosto de vê-la em seu silêncio de
quem ouve tudo, sempre com uma expressão serena. Com Malitzia ela fala, fala
baixinho, quase se desculpando do seu próprio som. Enquanto lençóis foram sendo
trocados, roupas do cesto carregadas, toalhas, os conselhos de sempre sobre o
banheiro, as mesmas perguntas sobre o dia da limpeza e os suprimentos do
frigobar, eu fiquei esperando uma novidade de Malitzia. Quis pensar que aquele
olhar inquieto de desejo era uma pergunta. Juçanã foi lavar a louça da noite,
mandando Malitzia comer, “toma teu café, toma, come, tua mãe mandou eu olhar”.
Dez. Eu estava inapto para previsões. Que não me viessem as madrastas!
A
novidade veio de outro canto, Juçanã lhe estendeu o bilhete que ela quase se
esquecera de entregar, era de Ilana. Malitzia fez de conta que não se importava,
jogou-o do outro lado da cama. Nada de varrer agora, Sanã. Depois que eu sair,
hoje eu vou, não faz mal o frio. E lá se foram as saias e aventais da tia-avó
morena, da tia índia, ama-seca, a coisa mais perto de mãe que Malitzia
conhecia. Porta trancada, os sons das três trancas de novo, as três trancas trágicas
como Malitzia gostava de dizer pra ele. Ela até fez um poema. “As três trancas
trágicas Uma. Duas. Três. Atravessam-me. Traio-as. E trago o mundo pelas
janelas. Abertas.”
Embora
Malitzia confessasse diante de mim que sabia que ele não tinha trepado (três
trancas) com ninguém na sua vinda ontem à noite, eu não precisava daquela
declaração para conhecer o conteúdo do bilhete. A trilha sonora então trocada e
o café da manhã recebendo a devida atenção já disseram que tudo estava intacto.
Tango. (Se eu pudesse declamaria agora, três, trancas, trocadas, traídas, tango).
Gardel era prenúncio de luxúria. Era prenúncio só porque ele não gostava de
tango, se não seria simultâneo ao ato.
Com
uma torrada na mão diante de mim e olhos nos olhos, ela anunciou, dessa vez
como quem finalmente entende os protocolos: “Ele vem hoje, sempre vem no dia
seguinte. Se veio só para jogar com a cambada, ou pra matutar o eleitorado,
então vem hoje, pela minha porta”. Não duvidei, até pude imaginar já o som dos
passos dele pela escada e as grandes portas de vidro da sacada se abrindo, as
duas, como sempre, como se entrasse um imperador muito largo. Malitzia sentada
na poltrona talvez, perfumada, nua, talvez com aquele chambre das manhãs de
sonhos de castelos, dama do lago, na penumbra. Talvez seminua, com as luzes
todas acesas, dançando ao som de Joss, sabendo que Thor a observava lá de sua
janela, tentando se manter são. Não importava como, mas esta noite Malitzia
estaria esperando, de janelas abertas, como sempre. E como sempre ele viria,
dono, homem. E Thor socaria alucinadamente as paredes como se fosse ele, o
gamo-rei. Enquanto eu imaginava tudo, Malitzia já sentava diante do computador,
para escrever, com um livro na mão. Corrs reabilitado. No alto da prateleira, o
vazio entre os velhos três volumes indicava: sim, seria a noite da senhora da
árvore.
quinta-feira, 11 de julho de 2013
Capítulo 11 - A secret chord
Ma quis transformar a leitura em experiência, creio
eu. Só conheci um trecho, do capitulo de Fernando. Quando Ma começou a ler,
passados uns três minutos, ela começou a saltar rápido, analisando a historia –
não, ela estava analisando a narração, agora vejo – com aquela rusga na testa.
Depois, sentada à beira da cama – e eu sem querer lembrando aquela tarde dois
dias antes – ficou por um tempo agitando os pés com um dedo à boca. Então foi
para o computador. Escutava um trecho de uma música e outra e outra. Parava,
pegava o livro, buscava um CD, ia até a janela, cantarolava. Que diabo de livro
é esse, pensei eu, ela o quer ou não?
Então tudo se organizou. Ela verificou a fechadura
da porta direita. Colocou mais um travesseiro na cama, olhou para a poltrona,
escolheu-a. Colocou o computador na mesinha, os fones de ouvido, e sentada já
com o livro suspirou. Abriu-o do inicio novamente e eu amaldiçoei todos os
fones de ouvido do mundo, inimigos das minhas catarses.
Comecei a tentar imaginar não apenas mais as
palavras, mas a música, pelos olhos de Malitzia, pelo menor movimento de sua
face, pelo jeito como movimentava os olhos e as dedos pelas páginas. O cabelo
que lhe caía na face era ao mesmo tempo uma palavra e uma nota. A perna
movendo-se era uma frase inteira ao som de Frank, de Janis, nas cordas de Muddy.
Então levei um susto. Ma arrancou o conector, invadindo
egoisticamente meu horizonte silencioso de sentido.
Era Jenny. Desliguei meus sons imaginários, a história
que eu estava lendo desmanchou-se, e minha imaginação vibrou na tentativa de
construir uma narrativa para aquela música. Digo narrativa porque certamente não
seriam poemas. Que leitor colocaria varias músicas diferentes a conversarem com
um único livro de poemas? Me vi esfregando as mãos de ansiedade. Jenny. Jenny.
E agora Amália. Deus criador, nunca! Olhei para Ma interrogativamente, ela
parecia avaliar o dialogo que tinha tentado propor. Definitivamente não estava
certo. Então ela disse baixinho a si mesma que teria de ser outra coisa para
Lisboa. Que não estava funcionando eu tinha certeza.
Então começou a tocar a aleluia de Jeff. O corpo
inteiro de Malitzia reagiu, como se ela não soubesse a sequencia. Tudo parou no
quarto. Malitzia olhou-me sentindo, sorriu. O livro fechado. As palavras
silenciam quando algumas delas vêm na canção.
Olhei nos seus olhos. Algumas músicas não suportam
o mundo. Quando elas tocam, a última gota do tempo escorre para o ralo. Fechamos
os olhos. Jeff na penumbra.
No meu peito não cabem pássaros, ela disse. No meu corpo está só esta canção.
Quando terminou, ficou um vazio cuja tristeza não tinha sentido na morte de Jeff, como na primeira vez. Era ele imortal afinal. A tristeza vinha eu acho de que a verdade é triste. A verdade veio quando o tempo voltou do ralo e toda a engrenagem começou a funcionar e ouvimos os barulhos da vida, essa coisa fabricada de ferro contra ferro, de metal e plástico.
No meu peito não cabem pássaros, ela disse. No meu corpo está só esta canção.
Quando terminou, ficou um vazio cuja tristeza não tinha sentido na morte de Jeff, como na primeira vez. Era ele imortal afinal. A tristeza vinha eu acho de que a verdade é triste. A verdade veio quando o tempo voltou do ralo e toda a engrenagem começou a funcionar e ouvimos os barulhos da vida, essa coisa fabricada de ferro contra ferro, de metal e plástico.
Então ela abriu o livro e leu. “Talvez o amor nos
ensine a sentir como é bom sentir, para dentro e para fora ao mesmo tempo, um
coração a falar com outro sem saber de nada, coisas lá deles, coisas de corações.
As contas acabam sempre por levar Fernando para junto do amor, mas é um
despropósito invocá-lo num escritório tão sério. Ainda se estraga o amor, sujo
com a tinta dos carimbos, esmagado sob o mata-borrão. O escritório não é lugar
para o amor, há que procurá-lo por onde ele anda.”
Malitzia começou a chorar. Eu sei que ela chorava
porque enfim tinha sido esta a experiência, entre um livro que não se pode ler
porque a canção grita e porque não há música para ele, e assim nem momento nem
sentido. Eu sei que ela chorava porque tudo era uma coisa só: um livro que só
sugere e a gente o concretiza inteiro naquilo que somos, o mesmo silencio
depois da canção, o mesmo vazio de palavras, tudo é uma dor única, e se afoga
com Jeff antes do show. Este é o acorde secreto. A verdade é triste quando o
amor está confinado a uma biblioteca.
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