Colaboradores

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Capítulo 11 - A secret chord


Ma quis transformar a leitura em experiência, creio eu. Só conheci um trecho, do capitulo de Fernando. Quando Ma começou a ler, passados uns três minutos, ela começou a saltar rápido, analisando a historia – não, ela estava analisando a narração, agora vejo – com aquela rusga na testa. Depois, sentada à beira da cama – e eu sem querer lembrando aquela tarde dois dias antes – ficou por um tempo agitando os pés com um dedo à boca. Então foi para o computador. Escutava um trecho de uma música e outra e outra. Parava, pegava o livro, buscava um CD, ia até a janela, cantarolava. Que diabo de livro é esse,  pensei eu, ela o quer ou não?
Então tudo se organizou. Ela verificou a fechadura da porta direita. Colocou mais um travesseiro na cama, olhou para a poltrona, escolheu-a. Colocou o computador na mesinha, os fones de ouvido, e sentada já com o livro suspirou. Abriu-o do inicio novamente e eu amaldiçoei todos os fones de ouvido do mundo, inimigos das minhas catarses.
Comecei a tentar imaginar não apenas mais as palavras, mas a música, pelos olhos de Malitzia, pelo menor movimento de sua face, pelo jeito como movimentava os olhos e as dedos pelas páginas. O cabelo que lhe caía na face era ao mesmo tempo uma palavra e uma nota. A perna movendo-se era uma frase inteira ao som de Frank, de Janis, nas cordas de Muddy. Então levei um susto. Ma arrancou  o conector, invadindo egoisticamente meu horizonte silencioso de sentido.
Era Jenny. Desliguei meus sons imaginários, a história que eu estava lendo desmanchou-se, e minha imaginação vibrou na tentativa de construir uma narrativa para aquela música. Digo narrativa porque certamente não seriam poemas. Que leitor colocaria varias músicas diferentes a conversarem com um único livro de poemas? Me vi esfregando as mãos de ansiedade. Jenny. Jenny. E agora Amália. Deus criador, nunca! Olhei para Ma interrogativamente, ela parecia avaliar o dialogo que tinha tentado propor. Definitivamente não estava certo. Então ela disse baixinho a si mesma que teria de ser outra coisa para Lisboa. Que não estava funcionando eu tinha certeza.
Então começou a tocar a aleluia de Jeff. O corpo inteiro de Malitzia reagiu, como se ela não soubesse a sequencia. Tudo parou no quarto. Malitzia olhou-me sentindo, sorriu. O livro fechado. As palavras silenciam quando algumas delas vêm na canção.
Olhei nos seus olhos. Algumas músicas não suportam o mundo. Quando elas tocam, a última gota do tempo escorre para o ralo. Fechamos os olhos. Jeff na penumbra. 
No meu peito não cabem pássaros, ela disse. No meu corpo está só esta canção.
Quando terminou, ficou um vazio cuja tristeza não tinha sentido na morte de Jeff, como na primeira vez. Era ele imortal afinal. A tristeza vinha eu acho de que a verdade é triste. A verdade veio quando o tempo voltou do ralo e toda a engrenagem começou a funcionar e ouvimos os barulhos da vida, essa coisa fabricada de ferro contra ferro, de metal e plástico.
Então ela abriu o livro e leu. “Talvez o amor nos ensine a sentir como é bom sentir, para dentro e para fora ao mesmo tempo, um coração a falar com outro sem saber de nada, coisas lá deles, coisas de corações. As contas acabam sempre por levar Fernando para junto do amor, mas é um despropósito invocá-lo num escritório tão sério. Ainda se estraga o amor, sujo com a tinta dos carimbos, esmagado sob o mata-borrão. O escritório não é lugar para o amor, há que procurá-lo por onde ele anda.”
Malitzia começou a chorar. Eu sei que ela chorava porque enfim tinha sido esta a experiência, entre um livro que não se pode ler porque a canção grita e porque não há música para ele, e assim nem momento nem sentido. Eu sei que ela chorava porque tudo era uma coisa só: um livro que só sugere e a gente o concretiza inteiro naquilo que somos, o mesmo silencio depois da canção, o mesmo vazio de palavras, tudo é uma dor única, e se afoga com Jeff antes do show. Este é o acorde secreto. A verdade é triste quando o amor está confinado a uma biblioteca.