Ma quis transformar a leitura em experiência, creio
eu. Só conheci um trecho, do capitulo de Fernando. Quando Ma começou a ler,
passados uns três minutos, ela começou a saltar rápido, analisando a historia –
não, ela estava analisando a narração, agora vejo – com aquela rusga na testa.
Depois, sentada à beira da cama – e eu sem querer lembrando aquela tarde dois
dias antes – ficou por um tempo agitando os pés com um dedo à boca. Então foi
para o computador. Escutava um trecho de uma música e outra e outra. Parava,
pegava o livro, buscava um CD, ia até a janela, cantarolava. Que diabo de livro
é esse, pensei eu, ela o quer ou não?
Então tudo se organizou. Ela verificou a fechadura
da porta direita. Colocou mais um travesseiro na cama, olhou para a poltrona,
escolheu-a. Colocou o computador na mesinha, os fones de ouvido, e sentada já
com o livro suspirou. Abriu-o do inicio novamente e eu amaldiçoei todos os
fones de ouvido do mundo, inimigos das minhas catarses.
Comecei a tentar imaginar não apenas mais as
palavras, mas a música, pelos olhos de Malitzia, pelo menor movimento de sua
face, pelo jeito como movimentava os olhos e as dedos pelas páginas. O cabelo
que lhe caía na face era ao mesmo tempo uma palavra e uma nota. A perna
movendo-se era uma frase inteira ao som de Frank, de Janis, nas cordas de Muddy.
Então levei um susto. Ma arrancou o conector, invadindo
egoisticamente meu horizonte silencioso de sentido.
Era Jenny. Desliguei meus sons imaginários, a história
que eu estava lendo desmanchou-se, e minha imaginação vibrou na tentativa de
construir uma narrativa para aquela música. Digo narrativa porque certamente não
seriam poemas. Que leitor colocaria varias músicas diferentes a conversarem com
um único livro de poemas? Me vi esfregando as mãos de ansiedade. Jenny. Jenny.
E agora Amália. Deus criador, nunca! Olhei para Ma interrogativamente, ela
parecia avaliar o dialogo que tinha tentado propor. Definitivamente não estava
certo. Então ela disse baixinho a si mesma que teria de ser outra coisa para
Lisboa. Que não estava funcionando eu tinha certeza.
Então começou a tocar a aleluia de Jeff. O corpo
inteiro de Malitzia reagiu, como se ela não soubesse a sequencia. Tudo parou no
quarto. Malitzia olhou-me sentindo, sorriu. O livro fechado. As palavras
silenciam quando algumas delas vêm na canção.
Olhei nos seus olhos. Algumas músicas não suportam
o mundo. Quando elas tocam, a última gota do tempo escorre para o ralo. Fechamos
os olhos. Jeff na penumbra.
No meu
peito não cabem pássaros, ela disse. No meu corpo está só esta canção.
Quando terminou, ficou um vazio cuja tristeza não
tinha sentido na morte de Jeff, como na primeira vez. Era ele imortal afinal. A
tristeza vinha eu acho de que a verdade é triste. A verdade veio quando o tempo
voltou do ralo e toda a engrenagem começou a funcionar e ouvimos os barulhos da
vida, essa coisa fabricada de ferro contra ferro, de metal e plástico.
Então ela abriu o livro e leu. “Talvez o amor nos
ensine a sentir como é bom sentir, para dentro e para fora ao mesmo tempo, um
coração a falar com outro sem saber de nada, coisas lá deles, coisas de corações.
As contas acabam sempre por levar Fernando para junto do amor, mas é um
despropósito invocá-lo num escritório tão sério. Ainda se estraga o amor, sujo
com a tinta dos carimbos, esmagado sob o mata-borrão. O escritório não é lugar
para o amor, há que procurá-lo por onde ele anda.”
Malitzia começou a chorar. Eu sei que ela chorava
porque enfim tinha sido esta a experiência, entre um livro que não se pode ler
porque a canção grita e porque não há música para ele, e assim nem momento nem
sentido. Eu sei que ela chorava porque tudo era uma coisa só: um livro que só
sugere e a gente o concretiza inteiro naquilo que somos, o mesmo silencio
depois da canção, o mesmo vazio de palavras, tudo é uma dor única, e se afoga
com Jeff antes do show. Este é o acorde secreto. A verdade é triste quando o
amor está confinado a uma biblioteca.