Colaboradores

domingo, 27 de julho de 2008

Então é isso

Então é isso, o sol se pôs
e as sombras das lâmpadas são estranhas

Não há disfarces no silêncio da noite
nem coisas pra dizer
Apenas é hora

As flores lá fora são cinzas
a casa fechada
É preciso tirar o casaco e os sapatos

Então é isso, as verdades estão nuas
e nos envergonham
como nossos corpos vestidos

É preciso tratar da solidez concreta
Das cartas embaixo da porta
E das horas que faltam

É preciso esconder as palavras
as músicas
e os encontros furtivos

Então é isso, não há lua no céu
nem cotovias e nem café amanhã
Apenas uma estranheza fria

O sol se pôs, então é isso
De repente somos desconhecidos

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Quente

Botei pimenta no feijão em vez de pimentão:
Desobedeço
Tu já mandas no meu corpo
Que despes e vestes de rubores
E dás ordens nas coisas de minha alma
Desmandando as vergonhas e os pudores
Já comandas todas as minhas vontades
A desarrumação dos lençóis, o perfume do corpo
Se eu fumo, se eu como, se eu leio
Intrometido, dono que és!
Botei pimenta, sim!
Pra incrementar o fogo que tu pões em mim.

Oração da noite

Vai longe minha santidade
Cozinho-te a sopa todos os dias
ervilha alho e pimenta vermelha ardida
para servir-te no prato de meu apetite

Visto a cama com lençóis roxos
perfumo o travesseiro e a nuca
nua com meu dragão e minhas armas
fecho as cortinas e descubro os espelhos

Espero-te assim em oração de desejo

E adormeço. Então vens
Tens fome sede e vontade de mim
Sirvo-te a sopa e meu corpo e me sacio
acordo santa e pronta para fingir o dia

O mundo inteiro

Teu corpo ainda estremece sobre o meu
(o que diria Freud sobre essa sensação de completude?)
Tenho uma árvore em mim
E um pássaro e um cervo
E o lago onde ele bebe
Tenho o sol e a lua em mim
E a terra
Eu tenho o fogo em mim
Eu tenho em mim uma mulher
E um homem e o filho dele que nela germina
Nesse instante em que teu coração bate no meu peito
Eu tenho em mim passado e futuro
Eu tenho em ti tudo de mim

Capa de chuva pra Romeu

Meu bem, que saudade de ti!
Ontem a chuva na janela me sussurrava teu nome
e eu, boba, boba, sonhava com escadas e uma rosa

A rosa, coitada, esquecida no chão
e a gente se amando de cortinas fechadas

A chuva magoada foi embora
veio o sol e trouxe o frio
- esse frio da janela que deixei ainda aberta

E nada!
Nem a rosa e nem a escada:
que o perigo ronda o quarteirão!

Que saudade de ti, meu bem!

Dores mudas

Minha angústia são os eucaliptos
Agitando-se ao longe na janela
Também ninguém ouve meu grito
Que o vidro da rotina abafa

Eles gritam uns aos outros
Uma dor única e mútua
Que já não me agride
Só me desconforta

O outono tem sido assim

Enquanto minhas folhas caem
E o cinza se torna uma sombra inteira
As coisas vão ficando frias
Como os musgos e as samambaias

Na primeira vez que os eucaliptos me acenaram
Da janela aberta tomei um susto
Aquele farfalhar no vento era um dor
Desesperada como a minha

Acostumei-me a vê-los
Acenando ao longe seus longos braços
Fria como quem espera e sabe
Nem digo aos eucaliptos que o inverno vai chegar

Baile da primavera

Comprei tecido estampado e botões coloridos
e fiz um vestido bem rodado
pra dançar comigo quando o sol voltar

É pra meu bem reparar

Quando o portão ranger um sorriso
quero ter leveza roxa, azul e branca
batom cor de boca – que é pra não lambuzar
e um céu bem azul
pra olhar no olho dele antes de abraçar

Quero meu vestido dançando entre os passos de meu bem
as cores e eu enchendo-o de beijos

Então, como a saudade é grande
e meu bem tem hora,
o vestido estampado vai para o cabide
pra não atrapalhar

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Expressionismo

Faz tempo que o mundo não é cor-de-rosa
Mas ele deixou seu azul escorrer de mim
Agora sobram sépias, nuvens brancas e águas sujas

Roubaste-me a palheta
Nunca foi minha
Trocam os deuses, as aquarelas e os pincéis apenas
Mas os retratos mortais são mesmos

terça-feira, 22 de julho de 2008

Vidraça embaçada

É uma paisagem estranha a desta janela
um ângulo desconhecido em vários
Procuro as formas e me inquieto:
um galho, um telhado, um sentimento novo
e desconserto-me em não saber
dos fragmentos um todo que me caiba

Há uma canção nesta janela
que fala de partidas e de uma espera

Há o toque de uma mão serena
que me afaga a alma e me desperta

Há uma voz forte que me despe o corpo
Ainda assim uma paisagem estranha

Nem o sol depois da chuva turva
me trouxe o alívio de alguma certeza
que fosse a árvore ou a arquitetura
o vulto do vendedor de jornais
o taxista atrás do muro
um lenço ao vento

Permanecem os pedaços todos
e em pedaços observo e espero
ouvindo uma canção que fala de partidas
e uma dor desconhecida me toma toda
como a chuva, turva, que molha a vidraça
e esconde os cacos da vida

Tem alguém aí?

Estou cansada de dúvidas, queria uma certeza apenas, nem que fosse a de estar viva. Fico juntando cacos aqui e ali para me montar e não consigo. As coisas não encaixam, descolam, quebram. Tento juntar as palavras mas são folhas ao vento. Assim os perfumes, voláteis. Os sorrisos e os olhares estranhos. As sombras, os ângulos em movimento. Um lugar à luz fracionada do sol. Sensações, lembranças.
Mas de que me valem os sentidos e a memória se tudo é inconstante? Essas coisas que eu quero, fugidias, não deveriam ser eu mesma? Se tudo me escapa, o que me constrói?
A carne apodrece. Nem resta o fétido. O que vale é esse segundo. Sentiste?

Impressão

Então veio Monet. Ele ali na frente e a minha catarse formigando as mãos. Quero tocá-lo: ele na minha pele, na minha alma, nas minhas sinapses, aquecendo a ponta dos meus dedos, vibrando o mundo a minha volta. Monet pulsa, quero comê-lo: ele no meu sangue, na minha carne, na minha pele, meu suor a Monet. Então eu seria um pouco mais eu. Quero olhar nos olhos de Monet e me enxergar. Monet me desconstruindo, Monet me sussurrando a vida fora daquelas molduras. Nem as cores, nem as formas, importa Monet me dizendo de mim.

Planetário da língua

As sensações estão me engasgando. Mas ontem já chorei. Chorei por causa das palavras. Uma a uma elas me consumiram. Como uma palavra pode ser tão pesada? São as vozes que afligem as palavras? Ou é a palavra iminente que desconcerta a boca? As palavras, humanas demasiado humanas, apagaram minhas perguntas e me sufocaram de imprecisões. Fiquei ali sem falas, repleta de sons e sentidos, oca e soçobrante. Sobravam sentidos, faltavam significados. Como tomar essas palavras que escorrem, não perdê-las no afã e na fome, e na sua volubilidade, como vertê-las fonte eterna?

terça-feira, 15 de julho de 2008

Uma vez um amor

Tentei subir uma escada
três degraus dançando o baile
escorreguei
me quebrei toda
E o céu ficou longe

Mesas redondas

Sinto falta das teorias
as literárias
mas as tuas
lacunares assindéticas
tão bem coordenadas por ti

Tuas teorias
desconstrutoras de mim
quero-as
para repensar meu texto

Quero-as
para te pensar ensaio
tempo, espaço, narrador
teu enredo todo

biográfico de mim

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Minhas lacunas ainda não me fazem falta. Estou apenas me esboçando. Este vazio aqui é que ainda não entendi. Não sei se é reentrância minha mesmo ou é porque me tiraram algo que desconheço. Deve ser coisa importante, porque dói. Vez por outra paro de funcionar, então me conserto tapando o vazio com um punhado de sonhos. Minhas lacunas não, essas estão lá, esperando os sonhos evaporarem.

A tristeza sempre tem razão

Perguntei pra minha tristeza por quê
e ela me apontou o coração com dedo de remorso
Bobagem, disse eu, é o mundo
o espanto e as perguntas

Ela sorriu seu sorriso
e voltou para o seu cantinho

Fiquei pensando nela
e acariciei-a de leve e estranha

Pensei tantos dias na minha tristeza
- e tu não me falaste nada -
que entendi que ela tinha razão

Jornada heróica

Meu mundo só tu sabes
é teu porque deste as cores

e do barro dele tens me feito
com tuas mãos de deus displicente

Tu me nomeias

Tu és meu guerreiro
mas também és Shug:

olho tua imagem e me fortaleço
creio em mim
e em mim se completa o mago

Dêitica herética

No meu caminho há esta igreja
Que me tenta com sua imponência masculina
A safada é de pedra, fria e arrogante

Me joga na cara sua porta fechada ao meio-dia
Ereta, seus mullions me despem zombeteiros
Sua fálica torre inatingível à luz do sol

Sei bem o que ela esconde
Em átrio e celas e cortinas confessionais

Um terno altar iluminado pela luz
Que alcança os ondulatoires e disfarçam
Em pureza amarelada e morta

A vida pulsante que me chama da rua
A esse gozo da alma e da carne insone

terça-feira, 8 de julho de 2008

Por que injustificadas causas? Por que inoportunos fins? Por que intoleráveis conseqüências?
Quero as razões, os métodos e os resultados, as teorias todas. Nada me adivinha. Tudo me descobre. Minhas perguntas me põem em desconcerto alerta. Tenho urgência das significâncias.
Mas como o eco é vazio e no espelho a rusga é minha, suspiro e me contento com minha própria impertinência. Só respiro e pronto.
Delirius tremens

O grito que eu dei pra me acordar me pôs um sonho na boca
Abri os olhos de cantinho
só pra certeza de que era mesmo dele esse gosto

Batia raio de sol da manhã
Resmungava vento na janela
E eu dormia

Ele na minha boca vertendo esse gosto bom de vida
O grito já longe espiando da janela
(aqui dentro gritava um sussurro de agonia próxima)

E eu dormia

O corpo dele me ninando embalando o meu
me apontando as pertinências todas da vida
Pra que viver senão esse sonho dele?

Eu toda adormecida
nem vi que o dia andava longe e sinistro
carregando já meus desencantos

Foi ficando um gosto estranho na boca
O sol alto formigando o corpo
O grito e o vento batendo na janela

Hum, tão cedo ainda...

Fecha essa cortina que o dia é lindo aqui dentro
Não me digam nada
que eu não nasci pras verdades

Deixa eu sonhar que vivo