Eu vi a face de Malitzia no momento em que ele deu a ordem. Os olhos dela escureceram na fração de segundo entre o reconhecimento e a obediência. Eu pude sentir o poder das palavras se condensando no ar do quarto. E era ela ali. Nem Cleópatra, Ofélia, Elizabeth, Serena. Era ela despida, nua em si mesma.
Tentei recapitular o livro que tinha estado em suas mãos naquela manhã, olhei para o aparelho de som, busquei qualquer traço delas na cama, nas roupas que ela vestira. Ela sequer colocara uma música, nem um perfume, um lenço, uma pulseira. Era Malitzia saindo do banho quando ele entrou no quarto. Era ela se abaixando para lhe tirar os sapatos. Ela desabotoou cada botão da camisa dele. Ela pendurou a cinta no cabideiro, olhando para ele. Foi Malitzia quem sentou na beirada da cama, menos de um minuto antes de ele dizer. Era Malitzia ali de pernas abertas.
Duas horas. Não senti o tempo porque eu precisava entender. E me iludi em pensar que eram apenas as palavras, que ele soubera o verbo exato, o modo exato, imperativo.
Tempo depois, quando minhas ilusões ainda estavam íntegras, eu ainda pensava nisso, na habilidade das palavras em dominar o momento, em transformar. "Abras as pernas", e uma mulher se faz ali, como se esperasse o sopro do criador que lhe ordena seja, exista. O verbo. É isso. Nunca gostei muito da hermenêutica bíblica, mas desde que o homem é homem ele o é justamente pela palavra, por mais que inventemos metáforas para justificar o narrador do gênesis – como se ele não fosse capaz de já entender a relação entre significado e significante. As coisas todas estão aí desde que o mundo é mundo, mas o herói é quem as nomeia. Deus disse.
As imagens em movimento de tudo a que eu assisti naquele momento – por que não seguir nessa linha: bíblico – fixaram-se em mim de um modo que eu sempre pensava que poderiam ser vistas por quem me olhasse. E quando Malitzia ergueu-se sobre suas duas pernas e olhou para mim depois daquelas duas horas, tenho certeza de que ela viu. Ela viu a si mesma, exatamente como eu a vira, de pernas abertas e olhos negros, querendo ser exatamente a coisa mais óbvia que uma mulher pode ser – e do que ela julgava sempre se afastar com seus livros.
Ah, sim. E por uma ínfima fração de segundo o meu escárnio começou a brotar e eu ia sorrir, eu ia, mas ela sorriu primeiro. Ela se viu e ainda assim sentiu que aprendia, que sua essência estava intacta, que não se corrompia.
É uma palavra do gênero masculino que me designa. E foi ali que eu entendi que Malitzia era apenas mais uma personagem.
Quando Malitizia começou a ler Noturno no Chile, ela estava ouvindo música jesuítica. Eu tenho certeza de que ela não conhecia a história do romance, então a escolha da música foi casual. Imagino que como ela nunca tivesse lido nenhum Bolaño quis algo que não lhe tirasse a atenção das palavras. Geralmente era assim, as trilhas sonoras para os romances desconhecidos não podiam ter letras cantáveis. E ela separava as listas de reprodução assim: pelo gênero que ela leria ou escreveria.
Assim que Padre Urrutia ergueu a mão, fazendo o sinal da cruz na pequena cabana dos camponeses, Malitzia pensou que podia ser freira. Achou que talvez estivesse ouvindo um chamado. Ergueu os olhos do livro, perscrutando a si mesma, vendo-se num claustro chileno, inteiramente entregue às orações, mas as orações seriam essa música, que então ela ouvia e que parecia dizer que ela devia enxergar Deus. Malitzia fechou os olhos, a música dizia aleluia, e ela pensou se isso seria o certo. Imaginou-se lendo, de novo numa cela monástica, isolada, o que não era muito diferente do que tinha ali. Fiquei pensando que visão romântica ela teria da vida religiosa, uma Mariana Alcoforado a escrever cartas de amor desiludido. Mas não, ela estava realmente avaliando a inconcebível hipótese de certa fé ou o que seja, e da castidade. Olhou-me.
– Eu poderia viver sem sexo? – Virou-se então para o vazio, com o livro aberto no colo, e assim ficou, eu sei, imaginando a vida aquém do corpo, pura alma, por longos minutos. Eu tentei olhar nos olhos dela, como se ali eu fosse encontrar toda a lascívia possível, resumida numa dúvida, todas as tentações, numa única imagem. Mas a música que Ma ouvia me impedia a luxúria e eu quase disse amém. Voltou-se para mim, os lábios entreabertos.
– Não – sorriu, e então eu pude enxergar. Voltou ao livro. E o modo como seus olhos se voltaram de novo às páginas era então diferente. Eu me senti um pouco afetado pela dúvida, talvez pela música, como se uma porta se tivesse aberto, como se no mundo houvesse algo mais, havia ali algo que tornava o ar estranho, como é o cheiro das catedrais, o eco das coisas, o silêncio dos fieis. Malitizia voltara à ficção, à verdadeira ficção.
– Neruda. Neruda estava no jardim, declamando para a lua. O que tu achas de abrir a janela e encontrar Neruda no jardim, declamando para a lua? – E assim ergueu-se da cama, abrindo o par de venezianas da sacada (e eu quase pude ver Neruda num jardim, em frente a uma estátua grega à luz do luar) e a noite e o frio entraram no quarto. Ela apagou a luz e pegou o livro, lendo-o em pé, no vão da porta, erguendo-o para a luz da rua. Na música, sinos pareceram tocar, mas não sei se tocaram ou se fui eu que ouvi, pensando em Isla Negra.
Assim ela ficou, lendo na penumbra, o Bolaño nas mãos. Eu não pensei em Deus, mas na Virgem, o vestido de Malitzia movendo-se na brisa, seu casaco um manto, seu perfil diante da porta, a luz no fundo como uma pintura, estática com o livro diante do corpo. Os quadros deviam ter música, assim, exatamente assim, como Malitzia, Glória, Aleluia. E Deus me perdoe pelo que eu pensei. A coisa a inquietava, não a coisa enredo, a coisa forma, ou a coisa estrutura. Porque eu podia ver quando era a narrativa, seus nós e cruzamentos, ou era uma personagem, tão viva que aparecia no quarto e com quem Malitzia conversava, ou era a narração ou, como agora, a visão do artista. Não era o narrador Urrutia, de quem ela teve uma espécie de desconfiança, mas o próprio Bolaño.
– Quando eu enxergo a caneta... será isso bom? Olha, Bolaño está aqui escrevendo, posso ouvir seu pensamento, posso vê-lo nas entrelinhas. Não é Urrutia, o padre é um fraco. Escondeu-se na crítica. Espera... se eu posso concebê-lo assim, humano, fragilizado e mortal... então ele poderia apagar Bolaño? – Olhou para a rua, o livro aberto na mão esquerda.
– O narrador, é o narrador que apaga a voz... e ele é o narrador, embora às vezes não o seja. Esse romance é tão... As histórias se enredam, as vozes se misturam como em uma oração. Podia estar vivo e jamais seria lido até o fim. Imagino aqui a história do Chile, quem foi Farewell? Sordel ou Sordello. Que Sordello? Blacatz, Pound, e Neruda? É proposital o sobrenome Urrutia, o mesmo de Matilde, La chascona? Mas eu não quero saber, quero imaginar que Bolaño nutria uma curiosidade especial por La chascona, que talvez a tenha conhecido, não sei... Quero pensar que Bolaño ainda ri da confusão de quem lê, e que, ao mesmo tempo em que sabe o quão sério ele está falando, ele também sabe, como eu não, o que é incluir Allende, Pinochet e mesmo Neruda em sua história – o livro foi fechado e Malitzia recostou-se na cabeceira – Bolaño, é assim que se imortaliza.
– Eu jamais poderia escrever uma história assim. Que personagens eu poderia criar com a verossimilhança da experiência? Eu não vivi nada que pudesse ser narrado, não há história, história... Tenho até vergonha de pensar em nomes, eu jamais citaria, sequer, esses nomes. Como eu poderia colocar o Bandeira em minha história? O que eu teria para ele ou para qualquer outro? Para o mais reles mortal. Seria inverossímil eu dizer qualquer coisa de alguém, se nunca vivi nada que não fosse de papel. Minha história seria um arremedo. A primeira frase faria Hemingway rir, Jane teria pena de mim. Todos ergueriam o dedo para mim... eu, a usurpadora de vidas. A fingidora de fingimentos.
Então ela voltou ao livro: – Vamos, Urrutia, minta pra mim, minta... Só tenho a ti para crer.